ENTREVISTA COM O DIRETOR E ROTEIRISTA DE “MENINO 23”

Um bate-papo com Belisario Franca, diretor e corroteirista de um dos documentários brasileiros mais contundes dos últimos anos: Menino 23

 

 

Por Eduardo Torelli

Fotos Divulgação

 

 

É a pura verdade, não o enredo de um filme de terror: nos anos 1930, 50 meninos negros foram levados de um orfanato no Rio de Janeiro para uma fazenda no interior de São Paulo. Ali, perderam suas individualidades, passando a ser identificados por números, e foram escravizados diante dos olhos indiferentes da sociedade local. Os donos da fazenda eram simpatizantes do Nazismo – e essa crônica de pesadelo só veio à tona porque, recentemente, foram descobertos no local tijolos marcados com a suástica.

O fato levou o historiador Sydney Aguilar Filho a investigar o caso e a elaborar uma tese sobre o assunto. E também deu origem ao ótimo documentário Menino 23, de Belisario Franca, que reconta aqueles eventos sombrios e dá voz a dois sobreviventes da tragédia – Aloízio Silva (então, chamado apenas de “Menino 23”) e Argemiro Santos –, assim como à família de José Alves de Almeida (o “Dois”). Nesta entrevista à Zoom Magazine, Belisario, da produtora Giros, conta como foi realizar Menino 23 e faz um alerta: “O Brasil é o país da negação. Somos uma nação violenta e racista, mas neguemos isto constantemente.”

 

COMO VOCÊ TOMOU CONTATO COM A HISTÓRIA E O TEMA DE MENINO 23?

Somos uma produtora que faz muitos projetos para a TV, incluindo documentários. Em 2011, uma das pesquisadoras da casa nos apresentou uma matéria sobre o professor Sydney Aguilar Filho, que tomara conhecimento de um tijolo com uma suástica nazista no interior de São Paulo. Li a matéria, me interessei e liguei para Sydney. Ele veio se encontrar conosco no Rio de Janeiro e, àquelas alturas, já havia pesquisado muito o assunto. De fato, estava preparando uma tese sobre o tema, que seria apresentada no ano seguinte. Quando me contou a história, me deparei com temas que sempre me interessaram. Em seu relato, notei permanências – fatos de 70 anos atrás que continuavam em nossa cultura. E o mais interessante: eu tinha uma história com “H” maiúsculo sobre o passado do Brasil, que incluía os ecos do início da República e do fim da escravatura e a entrada dos conceitos de Eugenia e Higienismo no país, assim como evidências da adesão maciça de nossa elite política, econômica e religiosa àqueles conceitos.

 

E TAMBÉM, O DRAMA VIVIDO PELOS MENINOS, QUE É BEM RETRATADO NO DOCUMENTÁRIO.

Sim. Tudo isso me atraiu imediatamente. Era espantoso que tal coisa realmente tivesse acontecido. Porém, é bom lembrar que o Brasil é o país da negação: somos uma nação violenta e racista, mas negamos isto constantemente. E isso tem raízes. São ecos do passado que repercutem no presente. Com esta história na mão, vi um filme que conectaria uma história real do passado com um lado do Brasil para o qual não gostamos de olhar. É claro que negamos isto, mas somos racistas, violentos e temos uma elite crudelíssima.

 

COMO O PROJETO DO FILME SE DESENVOLVEU?

Sydney foi muito generoso em nos apresentar toda a sua pesquisa. Mas nos pediu para não nos apressarmos muito, pois ainda apresentaria a tese e queria preservar seu ineditismo. De qualquer modo, decidimos começar a rodar o filme, já que Seu Aloízio tinha 89 anos naquela época. Assim, as gravações começaram: fomos ao interior de São Paulo duas vezes e trouxemos Seu Aloízio de volta ao Rio de Janeiro, de onde ele fora levado 80 anos antes. Imagine sua emoção. No dia em que gravamos a cena na qual ele revisita o orfanato, Seu Aloízio estava impecável, com roupa nova. Começou a subir as escadarias do educandário e suas expressões foram mudando, se tornando mais densas. Praticamente sentíamos as memórias atravessando o ar e entrando nele. Foi um momento único.

 

E OS OUTROS PERSONAGENS DA HISTÓRIA? COMO VOCÊS OS ENCONTRARAM?

Em um de seus depoimentos, Seu Aloízio mencionou Argemiro Santos. Então, passamos seis meses pesquisando os arquivos da Marinha e o encontramos. Seu Argemiro nunca havia contado a ninguém a história que vivera na infância. Nem sequer à esposa e aos filhos. O projeto nos fez viver experiências interessantes. A partir da memória oral daqueles dois sobreviventes (e da família de José Alves de Almeida, o “Dois”, conectada com a história com ‘H’” que mencionei anteriormente), tentamos fazer com que este aspecto de nossa sociedade viesse à luz, para que possamos refletir sobre ele. Agora mesmo, o Brasil talvez esteja produzindo novos Aloízios e Argemiros. Filmes como esse podem ajudar a excluir essa possibilidade.

 

QUAL FOI A LOGÍSTICA DE CAPTAÇÃO DAS IMAGENS?

A prioridade foi garantir as gravações com Aloízio e Argemiro, que estavam bem de saúde à época, mas que já tinham muita idade. De imediato, fizemos as filmagens com eles, em 2011 e 2012. No caso de Argemiro, fizemos quatro captações. E como tínhamos pressa, gravamos com recursos próprios da produtora. Só depois buscamos incentivos e patrocínios para o projeto, que foram utilizados para rodar mais cenas. Mas, já naquela etapa preliminar, respirei aliviado: eu conseguira o material necessário para montar o filme. De posse desses primeiros depoimentos e do material original da tese, começamos a estruturar um roteiro. Lidávamos com três tempos: os anos 1930, a pesquisa do professor (iniciada dez anos atrás e concluída em 2012) e o tempo atual, que é o da filmagem. Entrelaçamos esses três momentos e creio que isto funcionou. Também contratamos um pesquisador que mapeou tudo o que havia sobre o tema no Brasil e no exterior, o que deu uma “musculatura” ao filme. Quando entramos na reta final de gravação, já pensando na montagem, tínhamos uma ideia clara de como queríamos contar a história. Para a captação, usamos um coletivo de câmeras. Desde uma Canon 5D, utilizada nas gravações de 2011, até uma S5, da Sony, que usamos nas recriações.

 

O TEMA QUE VOCÊS ABORDARAM É MUITO SENSÍVEL. ENVOLVE MEMÓRIAS RUINS E SOFRIMENTO. FOI PRECISO UM POUCO DE PSICOLOGIA PARA CONDUZIR AS ENTREVISTAS?

Eu e Sydney conduzimos juntos as entrevistas. Sim, é preciso seguir uma estratégia específica para abordar pessoas com memórias de trauma. Deve-se ir com muito cuidado, mas com certa perseverança. A questão da materialidade é sempre positiva – trazer Seu Aloízio ao orfanato ajudou a comporta se “abrir”. E mostrar as imagens da fazenda a Seu Argemiro também fez com que ele ficasse imerso naquilo e se sentisse apto a falar. É claro que não são imagens agradáveis, mas isso também tem um efeito transformador: proporciona um alívio, ajuda a atenuar um pouco do “peso”. Às vezes é preciso romper o silêncio – e, com Aloízio e Argemiro, isso foi feito gradativa e cuidadosamente. Em nenhum momento “esticamos a corda”. Os depoimentos não foram captados de uma só vez e cada vez que voltávamos, sentíamos que a entrevista anterior surtira um efeito positivo no retorno daquelas memórias.

 

A EDIÇÃO FOI TRABALHOSA, CONSIDERANDO QUE A HISTÓRIA ENVOLVIA TRÊS ÉPOCAS DISTINTAS?

Não tínhamos o filme “pronto” quando fomos para a ilha de edição. Foi um longo processo, uma aventura até chegarmos ao formato final. A montagem é uma “reescritura”, especialmente no caso do documentário. Tínhamos muito material. O filme é baseado em uma tese de doutorado e dá para imaginar que o conteúdo era extenso. O drama humano dos garotos é parte da tese, mas é um aspecto menos relevante em comparação às informações. O filme é o contrário: nele, temos 30% de história e 70% de drama. O cinema é síntese, diferentemente da tese, que pode se estender por muitas páginas. Não queríamos fazer um filme de 240 minutos, e sim, algo de 80 minutos, que é a duração de um “doc”. E ainda há a questão do ritmo. A história precisa ser acompanhada com interesse pelo espectador. O filme tem uma curva dramática – um primeiro, um segundo e um terceiro atos. Poderíamos ter montado o filme de forma linear, mas optamos por atrasar alguns tempos e adiantar outros, criando ganchos que mantivessem o fluxo e a organicidade da montagem. Não foi simples, tivemos que fazer escolhas difíceis (abrir mão é sempre difícil, mas necessário), mas foi uma experiência incrível.

 

UM ASPECTO INTERESSANTE DO DOCUMENTÁRIO É QUE, DIFERENTEMENTE DA MAIORIA DOS FILMES DE FICÇÃO, ELES CONTINUAM RELEVANTES MESMO DEPOIS DA ESTREIA.

Sim. Neste filme, adotamos uma estratégia que chamamos de “campanha de impacto”. Ele tem, para além da história com “H”, dois temas subjacentes muito fortes: a infância desassistida no Brasil e o racismo à brasileira. Com esses dois temas, trabalhamos o filme junto a fóruns de vários públicos. O documentário foi apresentado a públicos acadêmicos e trabalhado junto a órgãos governamentais ligados às questões sociais. Também foi selecionado e exibido em festivais do Brasil e do exterior. E agora está disponível no NOW da NET. A campanha de impacto continua a ser feita, pois queremos que Menino 23 seja uma ferramenta de provocação e de debates sobre esses temas.

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