TAKE ÚNICO – O PLANO-SEQUÊNCIA!

Celebrizado na cena inicial do clássico estadunidense ‘A Marca da Maldade’, o plano-sequência tem adeptos em várias outras cinematografias

Texto: Luiz Carlos Lucena
Imagens: Divulgação

Orson Welles já era um cineasta reconhecido em todo mundo pela realização de Cidadão Kane quando enfrentou o desafio de filmar, em 1957, a trajetória de um policial corrupto em A Marca da Maldade. Welles construiu, então, aquela que é considerada a mais bela abertura da história do cinema, capaz de tirar o fôlego de quem aprecia a arte. Uma câmera passeia sobre um prédio, desce e acompanha, pela rua, personagens que cruzam com carros e com outras pessoas, em uma tomada única.

A cena começa com o acionamento de uma bomba (em close) e segue com planos isolados e captados em uma mesma tomada. É um plano-sequência memorável! O modo como Welles consegue posicionar a câmera torna possível mostrar toda a caminhada de um casal, costurada por um tema musical que aumenta a tensão (afinal, sabemos que a bomba vai explodir).

Na esteira de Welles (e famoso por imitar Hitchcock), Brian de Palma é outro adepto do plano-sequência – quase sempre utiliza um deles em seus filmes. O mais famoso está na abertura de Olhos de Serpente, no qual a câmera acompanha a caminhada de Nicolas Cage pelo interior de um estádio onde acontecerá uma luta (e também, o crime que motiva o roteiro). O Jogador, de Robert Altman, tem outro plano-sequência memorável. E Gus Van Sant construiu uma grande tomada única em O Elefante, ao acompanhar um dos protagonistas andando pela escola onde, mais tarde, ocorrerá um tiroteio.

Recurso de linguagem

O plano-sequência é um recurso de linguagem importantíssimo, não apenas pela beleza e o desafio técnico envolvidos, mas, principalmente, para a compreensão do que vemos na tela. O cineasta boliviano Jorge Sanjines, contemporâneo de Glauber Rocha, elaborou, inclusive, um estudo sobre o tema em seu trabalho Plano-Sequência Integral.

O diretor, grande documentarista em filmes que versam sobre seu país, acredita que, para representar o povo por meio do personagem coletivo (e para que este seja mostrado em sua totalidade), o recurso mais apropriado é o plano-sequência. Segundo Sanjines, ele tira do diretor a autoridade que este constroi com a planificação tradicional do plano médio, do primeiro plano, do close utilizado por Griffith ou do fotograma de Eisentein, que buscam criar emoção.

Tempo circular

Sanjines acredita que o plano-sequência permite explorar livremente a performance dos atores e de personagens que são das próprias comunidades. O campo simbólico, portanto, ganha expressividade maior. Os rituais e o modo de vida da comunidade, os atores-personagens e os grandes planos da natureza – os morros e as montanhas bolivianas –, compõem seu universo imagético.

O plano-sequência integral, como ele denominava “responde a uma ideia sobre o tempo circular do mundo andino, que é distinto do tempo linear ocidental, e que, por outro lado, está expressando o sentimento de integração, de coletividade, próprio dos homens andinos”. Sanjines afirma conseguir, no plano-sequência, o distanciamento adequado como uma crítica à própria encenação, permitindo a reflexão, que seria limitada pelo uso de cortes, closes e planos curtos.

“Cortar em um primeiro plano seria impor brutalmente o ponto de vista do autor, que obriga e imprime significâncias que devem ser aceitas”, disse o cineasta. ‘Chegar ao plano por entre os demais, e junto aos demais, dá outro sentido à sequência; contém outra atitude, mais coerente com o que está ocorrendo no interior do quadro”.

Cenas memoráveis

Sanjines também vê, no plano fechado (que impõe o ponto de vista), o papel hegemônico do cinema norte-americano, contra o qual investe em seu trabalho – a mesma ideia de luta de Glauber Rocha com seu Cinema Novo, que recusava as ideias formatadas pelo “colonizador”. Glauber construiu cenas memoráveis em plano único, não os planos longos de Olhos de Serpente, mas os planos circulares que estão no encontro do casal, antes do duelo em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Os russos também são mestres no uso do plano-sequência, fortemente presente em dois clássicos: o seminal Soy Cuba, de Mikhail Kalatozov, e o imperdível Arca Russa, um longo e único take que constroi todo o filme de 95 minutos de Alexandr Sokurov.

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