Trabalhando com o elenco

Cinema na Prática: O trabalho com o elenco

Saber trabalhar com o elenco é fundamental; o diretor pode (e deve!) ajudar os atores a encontrarem o cerne de suas personagens

Como dissemos no capítulo anterior, ser um bom diretor implica em ser capaz de colocar o ator no âmago da história que se quer contar e em ajudá-lo a vestir a “pele” de qualquer personagem. Daí a importância de o diretor conhecer a fundo o ofício da arte cênica, bem como levantar dados importantes da obra (roteiro) que servirão de apoio para que o ator construa sua personagem. Também falamos sobre o que chamamos de “Método” ou “Sistema”: o conjunto de ferramentas técnicas com origens no legado de K. Stanislavski e que vem sendo adotado por monstros sagrados do cinema e do teatro há décadas, com resultados virtuosos.

Agora, chegou o momento de trabalhar com seus atores e dar vida às personagens e às cenas. Vamos listar uma sequência de etapas simples, que devem ser atravessadas e exploradas, e que poderão servir como um guia sólido para os diretores iniciantes (bem como fonte de reflexão para os mais experientes). Importante: vale sempre frisar que há diversas maneiras de se preparar e dirigir um elenco. O “Método”/”Sistema” é apenas uma delas – e, precisamente, a nossa escolha, por já ter comprovado sua eficácia e aplicabilidade ao longo do século.

Análise da obra

Esta é a única etapa exclusivamente “intelectual” do trabalho com os atores. Todas as etapas seguintes priorizam a prática e a vivência das personagens e cenas. Porém, antes de chegar a esse ponto, é necessário um pouquinho do conhecido “trabalho de mesa”. Nessa fase, diretor e atores devem discutir os elementos “motores” da obra, ou seja: as circunstâncias dadas pelo autor (“quem”, “o que”, “onde”, “quando” e “por que”)

· Quem são as personagens?

Já falamos um pouco sobre isso. Lembre-se que o autor (ou dramaturgo) nos fornece somente uma fração da vida de cada personagem. No entanto, nenhum ser vivo “vive em frações”; portanto, é necessário discutir opções coerentes para preencher as lacunas e descobrir de onde as personagens vieram, o que fazem, sua formação cultural e intelectual, sua situação econômica, sua educação e por aí afora. Todas essas informações servirão como “recheio” para a personagem, transformando-a em um ser completo e multidimensional, no qual poderemos verdadeiramente acreditar. É, também, fundamental discutir em detalhes as relações entre as personagens da obra, já que, muitas vezes, isso pode determinar a intensidade e a dinâmica de desenvolvimento das cenas. É importante lembrar que cinema é uma arte colaborativa e que atores e diretores podem ter a liberdade para discutir esses tópicos; no entanto, o diretor deve estar pronto e seguro para dar sugestões coerentes e orientar os atores sobre todos os elementos mencionados anteriormente.

· Quais os objetivos e razões de cada personagem?

Na vida, praticamente todas as nossas atitudes, decisões e ações são orientadas (ainda que inconscientemente) por objetivos e razões (ou justificativas). Explicando: suponhamos que eu queira fazer aulas de violão para ser capaz de entreter meus amigos em festinhas ou acampamentos. Nessa simples sentença, já é possível identificar um objetivo, ou o que (aprender a tocar violão); e também, uma razão/justificativa ou – o por que (para entreter meus amigos). Em uma cena de romance, por exemplo, uma personagem pode querer seduzir outra (objetivo), pois está apaixonada (razão/justificativa) ou para obter favores especiais (outra possibilidade de justificativas, dependendo da obra).  Em uma cena de ação policial, um investigador pode precisar prender um criminoso (objetivo), pois o bandido põe as vidas de muitas pessoas em risco (razão/justificativa). Da mesma forma, em qualquer cena, seja de cinema ou teatro, filme leve de comédia, ação frenética ou romance psicológico, cada personagem/ator deverá saber com clareza quais são seus objetivos e justificativas. Embora isso pareça óbvio, frequentemente atores mal-treinados e diretores despreparados estão mais preocupados em decorar uma fala e uma posição de câmera do que em saber quais são seus objetivos e justificativas naquele momento! 

Consequentemente, as cenas podem resultar em artificialidades e performances mecânicas. Já dizia Sanford Meisner, um dos gênios norte-americanos do teatro e cinema: “minha maior dificuldade é lembrar aos atores e diretores como um ser humano anda, fala, ouve, pensa e reage na vida real!”. Ainda dentro deste tópico, tão importante quanto descobrir os objetivos individuais de cada personagem é descobrir, também, quando esses objetivos são frustrados, ou seja: quando não podem ser alcançados ou realizados – o que, tradicionalmente, chamamos de “quebra de objetivo”. Para citar um exemplo, penso na cena clássica do filme Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan (se o leitor ainda não assistiu, corra e assista!), quando, dentro de um táxi, os irmãos interpretados magistralmente por Marlon Brando e Rod Steiger confrontam-se. O objetivo de Charley, o irmão mais velho (Steiger), é eliminar Terry (Brando); no entanto, por razões que não devo mencionar aqui (para não estragar o filme!), Charley não consegue realizar/alcançar seu objetivo – ou seja: ocorre, ali, uma “quebra de objetivo”. E o resultado é uma das cenas mais contundentes da história do cinema (aqui vale frisar que tanto os atores quanto o próprio diretor eram adeptos fervorosos e praticantes do “Método” ou “Sistema”).

· Onde e quando as cenas acontecem?

Embora este tópico seja bastante auto-explicativo, lembre-se de saber com clareza o lugar e o momento em que as cenas se desenrolam, para que haja coerência nas ações e reações das personagens. Um casal que briga e discute em seu próprio quarto, à noite, por exemplo, certamente iria fazê-lo de maneira bem diferente do que se a discussão acontecesse em um domingo à tarde no quarto de hóspedes da família da esposa, certo? Parece óbvio, não? Porém, lembre-se que, provavelmente, durante as gravações, as cenas serão captadas em uma locação artificial “dressada” e em horário diferente daquele apontado no roteiro. É relativamente comum que atores e diretores esqueçam completamente as circunstâncias (onde e quando) que envolvem as personagens. Consequentemente, as ações e reações podem, posteriormente (quando contextualizadas na obra através da montagem e edição), parecer incoerentes.

· Divisão da obra em “unidades”

Agora que todos já têm uma compreensão detalhada da obra, ou seja, sabemos quem são todos os envolvidos na história, onde e quando esta acontece e o que cada um deseja alcançar/realizar (bem como suas razões individuais), é coerente dividir a trama em unidades menores para facilitar o processo de ensaio. Evidentemente, os ensaios podem ser realizados cena-a-cena. Ainda assim, uma divisão em unidades maiores agrupadas por coerência dramática pode auxiliar atores e diretores em suas escolhas artísticas. Posso citar, como exemplo, uma obra escrita para o palco que foi, também, adaptada para as telas: “As Bruxas de Salem” (“The Crucible”), de Arthur Miller. Poderíamos, a princípio, dividir a obra em quatro etapas dramáticas distintas: 1) A descoberta de atividades obscuras; 2) O início da farsa e das acusações; 3) A revolta impotente dos acusados; 4) A ruptura da farsa e aplicação impiedosa das penas. Evidentemente, essas unidades podem, ainda, ser subdivididas em unidades menores. Independentemente do número de divisões, saber que a cena a ser ensaiada agora faz parte da “Revolta Impotente dos Acusados” pode ajudar bastante um diretor e seus atores.

· Dica

Nesse primeiro momento de “Análise da Obra”, evite cair na tentação de muitos diretores iniciantes – a realização da “leitura” da obra em grupo. Quando a obra é lida pelos atores antes mesmo da elaboração completa das personagens e da absorsão profunda de todos os detalhes da história, sempre há o risco de que eles “memorizem” ou “decorem” determinadas falas ou maneirismos superficiais e incoerentes com a proposta maior da obra. Como diria Stanislavski, “guardem as palavras do texto como se fossem pérolas. Cuidado para não desgastá-las.”. A leitura pode ser feita individualmente, a fim de se estudar a obra. A “Leitura em Conjunto”, no entanto, deve ser poupada para o momento em que atores e diretores já conhecerem a fundo as personagens e circunstâncias da história em questão.

Caracterizações e construções de personagem

Agora que já realizamos a etapa “intelectual” do trabalho com os atores, é chegado o momento de mergulhar na parte prática. Com base na análise já realizada, atores e diretores já devem possuir um bom leque de informações específicas sobre cada personagem, o que servirá de base para que possamos criar, de “dentro para fora”, todas as opções de caracterização. Sabemos que não existem dois seres humanos iguais, certo? Mesmo irmãos gêmeos criados na mesma casa e ambiente familiar possuem infinitas diferenças no que tange seus padrões de comportamento, personalidades, manias e maneirismos, vícios, sonhos, crenças, formas de andar e conduzir o corpo, de falar, expressões faciais características, ritmos de movimentos etc. E são justamente essas características que diretor e atores devem, agora, explorar até encontrar a “personagem ideal”. Para isso, evidentemente, é necessário contar com atores treinados que tenham completo controle sobre seus “instrumentos” (corpo, voz, expressões etc.).

Assim como um bom violinista saberá explorar de maneira eficaz e coerente seu violino para dele extrair toda gama possível de timbres e qualidades sonoras, também o ator deve ser capaz de manipular por completo o instrumento à sua disposição (ele próprio) para alcançar o resultado necessário e esperado pelo diretor.  Parafraseando alguns dos maiores atores e diretores da história (Stella Adler, Michael Chekhov e o próprio Stanislavski): “o pior ator é aquele que interpreta sempre a si próprio”, pois não possui o domínio técnico para criar as particularidades que cada papel exige. Consequentemente, um diretor que se contente com esse resultado (ao invés de exigir as individualidades de cada personagem) será, também, um diretor medíocre. Mas como chegar às melhores opções de caracterização para cada papel? Prática, laboratório e experimentação baseadas na análise inicial.

Explicando: nunca haverá apenas uma opção correta para determinada personagem. Pode haver, no entanto, uma “opção ideal”, que só poderá ser encontrada após muita prática. Com base na análise da obra, levantamos dados preciosos a respeito de cada personagem: sabemos o que ele faz, o que quer, como ele se relaciona com os outros, de onde vem e por aí afora. Agora, deve-se fazer as seguintes perguntas – qual seria o comportamento físico de uma pessoa com essas características? Como esta pessoa se movimentaria? Qual o ritmo de seus gestos? Como seria sua voz? Quais seriam seus maneirismos? Será que sua profissão determina gestos característicos ou manias oriundas do ofício? Este é um trabalho delicioso e verdadeiramente investigativo, pois diretor e ator devem experimentar diversas possibilidades até encontrarem a que mais lhes convença!

Evidentemente, o laboratório será de grande valia para consolidar as melhores escolhas: muitas vezes, aquilo que criamos no papel pode não ser coerente com a realidade, daí o valor do laboratório. A vivência, pesquisa e observação podem apontar escolhas soberbas para cada personagem. Daniel Day-Lewis é conhecido por realizar laboratórios longos e intensos – levou três anos construindo sua personagem para o longa Sangue Negro; e, durante esse tempo, fez questão de morar em tendas improvisadas em fazendas de petróleo no Texas, bem como aprender o ofício que haveria de interpretar no filme. Para o longa de ação O Último dos Moicanos, é sabido que o ator (representante extremo do “Método” e considerado por grande parte da crítica especializada como o maior ator vivo) decidiu viver por seis meses em condições rústicas nas florestas norte-americanas, aprendeu a caçar e tirar o couro de animais silvestres e – pasmem! – ajudou a construir as canoas indígenas utilizadas no longa! É claro que nem todos nós temos o tempo e os recursos para realizar laboratórios tão extensos.

Ainda assim, mesmo laboratórios enxutos podem agregar um valor inestimável à construção de uma personagem. Pesquise, explore e experimente! Aprenda a “degustar” e “saborear” a criação de cada personagem, estimulando e desafiando cada ator. Afinal, como diretor, esta é uma das etapas mais criativas, artísticas e complexas de nosso ofício. É importante lembrar, porém, que após serem feitas e cristalizadas as escolhas individuais para cada personagem, é necessário que estas fiquem “orgânicas” e verossímeis – o que exige muita prática. Encoraje seus atores a passar alguns dias se comportando, andando e falando como as personagens (desde que, evidentemente, o comportamento de tal personagem não coloque em risco a integridade física e emocional do ator). Caso isto não seja possível, providencie um local de ensaio onde os atores tenham a liberdade de realizar atividades cotidianas “incorporando” as características de cada personagem. Isto servirá para que o diretor avalie, critique, oriente e perceba quando as personagens estão verdadeiramente “prontas”, autênticas, orgânicas e, consequentemente, aptas a darem o próximo passo e a embarcar nos ensaios das cenas.

Ensaiando e “chegando” às cenas

Agora que todo o elenco compreende bem a obra (através da análise) e já tem as personagens vivas e orgânicas, é momento de abordar o texto e construir as cenas. Um primeiro passo que se mostra geralmente produtivo é, finalmente, fazer uma primeira leitura em conjunto. Diferentemente de outras práticas teatrais que propõem a realização de leituras desde o primeiro momento, o “Método/Sistema” sugere que se guarde essa etapa somente para quando as personagens já possuírem, de fato, uma identidade.

Dessa forma, a leitura não servirá para a memorização artificial das falas, mas para a constatação de comportamento das personagens. Essa leitura é um bom momento para que todos lembrem e vivenciem verbalmente com precisão cada objetivo inerente a cada papel em cada unidade.  Após essa leitura, iniciam-se os “jogos” cênicos com intento de lapidar artisticamente cada unidade do filme. Esses jogos geralmente são estruturados sobre improvisos gradativos, através dos quais se vai chegando, naturalmente, em cada cena do filme. Explicando: selecione uma das “unidades” ou cenas. Agora, determine quais personagens vão participar desse primeiro jogo. Entregue/solicite às personagens os elementos “motores” individuais (o “onde”, “quem”, “o que”, “por que” e “quando”). Se cada personagem sabe quem é, onde está, de onde vem e, finalmente, o que deseja fazer, basta dizer “ação” e observá-las agir! Este é um exercício precioso para atores e diretor. Através desta prática, o diretor pode realmente verificar:

· Se as personagens estão verdadeiras/verossímeis;

· Se as personagens sabem, de fato, o que querem;

· Se as relações entre as personagens são abordadas de modo coerente;

· Se as personagens, de fato, reagem ao lugar e ao momento onde estão colocadas.

Através do improviso, o diretor pode garantir que os atores realmente “mergulhem” na obra, ao invés de simplesmente decorarem falas e memorizarem deixas e posições. No intervalo entre cada sessão de improviso, cada um pode ler individualmente os trechos do texto que serviram de base para o exercício. Dessa forma, aos poucos e naturalmente, os atores “chegam” no texto espontaneamente. Filmes consagrados, como Touro Indomável e a trilogia O Poderoso Chefão, marcaram época com suas famosas sessões de improviso conduzidas por Scorsese e Coppola (sessões que não apenas ajudaram a preparar as cenas como, também, possibilitaram o surgimento de momentos preciosos, que acabaram por integrar as obras finalizadas). Para aqueles que acham o improviso algo muito “arriscado” ou inovador, lembrem-se que o próprio Stanislavski, no início do século passado, alegava que somente deixaria seus atores encenarem “Othelo”, de Shakespeare, quando fossem capazes de “improvisar” a obra em sua totalidade!

Imagine o leitor quanto domínio um ator precisa ter para improvisar um monumento colossal como “Othelo”! Cada detalhe, objetivo e nuance precisa estar profundamente resolvida antes de tamanha empreitada. Os mais desavisados podem encarar os jogos de improviso como um desrespeito ao texto. Muito pelo contrário: através do improviso, podemos nos certificar de que conhecemos verdadeiramente cada aspecto contido na obra. E assim, ao voltarmos para o texto, todo o “subtexto” já terá sido amplamente explorado; e cada fala, palavra e movimento estarão poupados do desgaste pela repetição e repletos de verdade e significado.

Estabelecemos, portanto, as etapas que o diretor deve atravessar com seu elenco para chegar à obra. Sim: é trabalhoso, de fato (quem falou que seria fácil ser um Coppola ou um Scorsese?) e a responsabilidade do diretor é enorme. Afinal de contas, não apenas ele é o condutor de toda essa “viagem”, como também deve manter-se suficientemente distante para ser capaz de avaliar criticamente e fornecer feedback para que cada ator saiba o que ajustar e melhorar. No entanto, a prática e a experiência serão suas grandes aliadas para transformar esta viagem na mais segura e prazeirosa possível. Como diria Volkonski: “O artista torna o que é difícil habitual, o que é habitual, fácil, e o que é fácil… belo.”. Portanto, arrisque-se e experimente!

Há, sem dúvida, um punhado de dicas e um precioso checklist que certamente será útil a todos os diretores. Mas este será o assunto do próximo capítulo.

*Este e outros artigos você encontra na edição 216 da Zoom Magazine

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