DOCUMENTÁRIO SOBRE GLAUBER ROCHA

Entrevista com Paloma, filha do lendário cineasta, e Joel Pizzini sobre o documentário da vida, obra e as cruzadas de Glauber Rocha

 

Por Eduardo Torelli

Fotos Divulgação / Tempo Glauber

 

 

 

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Quantas vezes o leitor não escutou esta frase – que, de tão repetida, perdeu muito de seu significado original? Mais do que ultrassimplificar os processos técnicos de produção em prol de uma mensagem “cabeça” (esta é a caricatura mais óbvia do movimento), o chamado “Cinema Novo” – que tem em Glauber Rocha (1939-1981) seu mais ilustre expoente – foi uma forma de perpetuar a Sétima Arte no Brasil em um período crítico: na década de 1950, o sonho do cinema “industrial” morrera com a falência dos grandes estúdios paulistas. Era hora de tentar e inventar, sob o risco dessa forma de expressão desaparecer totalmente do país.

 

Para entender Glauber Rocha – e por tabela, o Cinema Novo –, a dica é dar uma espiada no curioso Anabazys, documentário realizado pela filha do diretor (a realizadora Paloma Rocha) e Joel Pizzini, profundo connesier da obra do cineasta baiano. Zoom Magazine conversou com Paloma e Joel sobre o filme e o legado de Glauber, o carismático “astro” de Anabazys.

 

EM SE TRATANDO DE GLAUBER, É INEVITÁVEL PERGUNTAR A PALOMA ROCHA: AJUDA OU ATRAPALHA SER FILHA DE UMA FIGURA TÃO EMBLEMÁTICA DO CINEMA NACIONAL? OS CRÍTICOS TRAÇAM COMPARAÇÕES ENTRE SEUS FILMES E OS DELE?

 

Paloma Rocha: Do meu ponto de vista, sempre ajudou. Algumas vezes fui agredida e discriminada por ser filha de Glauber, mas isto nunca me atrapalhou. Ao contrário, norteou meus caminhos e escolhas. A crítica não compara meu estilo com o de Glauber. Ela aponta o fato de eu ser filha dele, e isto é inevitável. Trago comigo a experiência e o aprendizado de um cinema que existe para criar discursos e formas de libertar o homem de seus conflitos sociais, sejam eles políticos, econômicos, morais, religiosos ou existenciais. São filmes que permanecem sempre em cartaz. Anabazys me libertou, nestes sentidos, e espero que toque a todos que o assistam, que o sintam.

 

COMO TANTOS EXPOENTES DA ARTE BRASILEIRA, GLAUBER, ENQUANTO VIVO, ERA ENDEUSADO PELOS CRÍTICOS E CINEASTAS ESTRANGEIROS, MAS ESNOBADO EM SEU PRÓPRIO PAÍS. POR QUÊ?

 

P.R.: Glauber, às vezes, atribuiu esse comportamento ao fato de ter feito Deus e o Diabo na Terra do Sol aos 24 anos, ao que chamava de “conspiração da mediocridade” e “coisas típicas do subdesenvolvimento cultural”. Tratamos de todos esses assuntos no filme.

Joel Pizzini: Tom Jobim também reclamava desse desrespeito – como se quem desse certo sempre estivesse sob suspeita. Nelson Rodrigues batizou de “complexo de vira-latas” esse comportamento, esse puro deslumbramento com o que vem de fora. Glauber também, em Anabazys, diz que fez filmes fora do Brasil não como “colonizado”, mas como “recolonizador”.

 

 

JOEL, O DOCUMENTÁRIO É RICAMENTE ILUSTRADO POR CENAS DE BASTIDORES. É UM MATERIAL SURPREENDENTE, VISTO QUE A “CULTURA DO MAKING OF” SEQUER EXISTIA NAQUELE TEMPO. POR QUE GLAUBER REGISTROU ESSAS IMAGENS?

 

J.P.: Creio que Glauber tinha plena consciência de seu papel de líder do Cinema Novo e da importância que seu cinema representava para o patrimônio audiovisual latino-americano. De fato, ele foi um visionário, inclusive nesta preocupação em documentar e preservar sua obra, levando matrizes para o exterior e atribuindo à sua mãe a missão de criar um Centro Cultural para abrigar seu acervo. Hoje, talvez, o Tempo Glauber seja a maior instituição da América Latina que reúna a produção artística e intelectual de um cineasta. Sem dúvida, ele se preocupava em compartilhar sua experiência de vida, sua militância de cidadão e o método de criação e produção de sua arte.

 

VOCÊS TRABALHARAM A PARTIR DE UM ROTEIRO? COMO SE DEU A CONCEPÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DO DOCUMENTÁRIO?

 

J.P.: Anabazys se tornou um filme de reciclagem, recuperando imagens que estavam na lata de lixo da história e que, recombinadas, ressurgiram para dar vazão ao universo criativo de Glauber. No filme não há depoimentos nem entrevistados, e sim, personagens. As entrevistas são partes da pesquisa, do encontro, do registro inicial. Na montagem, foram integradas ao fluxo da narrativa, não por critério informativo, mas pela dinâmica rítmica, dialogando com a dicção delirante de Glauber. Experimentamos o conceito de montagem nuclear, onde a “qualidade está na quantidade” e a vertigem barroca faz parte da estrutura do filme. Quer dizer: o espectador é convidado a compartilhar uma experiência estética comandada por uma lógica onírica e sensorial, onde convivem forma e informação.

 

VOCÊS ACHAM QUE, COM O BARATEAMENTO DAS TECNOLOGIAS DE CAPTAÇÃO E EDIÇÃO E O BOM NÚMERO DE CANAIS DE EXIBIÇÃO (TVS A CABO, FESTIVAIS ETC.), ESTAMOS CAMINHANDO PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO CINEMA?

 

J.P.: Estamos na pré-história do cinema digital no país. Passada a euforia inicial, haverá uma espécie de “seleção virtual da espécie”. Nada muda no planeta, a não ser o ponto de vista sobre as coisas. A postura de um artista que tem algo a dizer sempre deve ser a mesma, independentemente da ferramenta que tiver em mãos. Não dá para ignorar o analfabetismo digital, que ainda é uma realidade em um país com mais de 20 milhões de pessoas vivendo na miséria, apesar dos 150 milhões de celulares. Temos que saber escolher e navegar em mares tão incertos e em crise de valores para produzirmos novos sentidos. Glauber é uma referência inspiradora, nesse sentido.

 

GLAUBER FOI UM VISIONÁRIO DA COMUNICAÇÃO. COMO ELE AVALIARIA AS NOVAS POSSIBILIDADES OFERECIDAS PELA INTERNET (OS SITES DE COMPARTILHAMENTO DE CONTEÚDOS QUE ESTÃO REVELANDO TALENTOS ANÔNIMOS)? E O QUE PENSARIA DO “CINEMA DA RETOMADA”?

 

J.P.: O crítico Paulo Emilio Salles Gomes chamava Glauber de “Profeta Alado”, enquanto dizia que a função do profeta “não é acertar, e sim, profetizar”. Nesta direção, e factível pensar que ele estaria imerso nos recursos oferecidos pelo Cyberespaço. Estaria navegando pela realidade virtual, imerso em investigações estéticas – sem “deletar”, contudo, a dimensão política do ato criativo e existencial. A Internet seria uma ferramenta poderosa em suas mãos, que, inevitavelmente, amplificaria seu discurso. De certo modo, ele anteviu tudo isso, praticando o “simultâneo-absoluto” em A Idade da Terra, um filme transgressor em todos os sentidos: foi estruturado com três montadores, realizado com música executada ao vivo, durante a filmagem, sem plano e contraplano e com a intervenção do diretor em cena, como ator de sua própria “euztorya”. Sobre a retomada, talvez escrevesse um livro, a exemplo de “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, que refletiria sobre as motivações estéticas e políticas dessas obras que reativaram a produção brasileira, sem o “bom-mocismo” que filtra as opiniões hoje em dia.

 

 

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