roteiros do cinema europeu

As particularidades dos roteiros dos filmes europeus

Por não se limitar a fórmulas, a filmografia europeia é mais propícia à experimentação estética

PorKatia Kreutz

O cinema europeu é um terreno fértil a ser explorado, já que possui uma longa e diversa história que se relaciona intimamente ao desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Seus roteiros, em especial, apresentam particularidades que os destacam do clássico modelo hollywoodiano de narrativa, características que tornam os filmes europeus ao mesmo tempo instigantes e desafiadores.

São comuns nos longas produzidos na Europa histórias que fogem da estrutura em três atos e da típica jornada do herói, uma espécie de “receita de bolo” que Hollywood costuma usar em seus roteiros. Na filmografia europeia, há mais espaço para explorar narrativas fragmentadas, não lineares, e experimentações estéticas, com influências culturais variadas. É um cinema que extrapola as fronteiras e mistura referências de dezenas de países, sem se limitar a uma fórmula específica.

O que caracteriza os roteiros de filmes europeus?

De acordo com Lucilene Pizoquero, pesquisadora de cinema e professora da Academia Internacional de Cinema, desde a Nouvelle Vague os roteiros europeus passaram a ter apelo mais autoral, já que muitos diretores também eram roteiristas. O movimento foi responsável por cunhar o termo caméra-stylo (ou “câmera-caneta”), no sentido de que os próprios cineastas realizavam a escrita do filme através da câmera.

Embora o ofício do roteirista também seja reconhecido na Europa, a abordagem mais livre e eclética da estrutura narrativa permitiu aos diretores realizarem um cinema amplamente baseado em experiências pessoais, que deu origem à “teoria do autor” (ou la politique des auteurs, como denominou François Truffaut, em ensaio para a popular revista “Cahiers du Cinema”). Com base nessa teoria, os diretores seriam os verdadeiros “autores” do filme, responsabilizando-se por todo o processo artístico e criativo, desde a escrita do roteiro até o corte final. Ao contrário dos EUA, onde os roteiristas compõem uma categoria à parte no processo cinematográfico, era comum para os cineastas europeus acumularem as duas funções.

roteiros do cinema europeu
Os franceses Catherine Deneuve, atriz, e François Truffaut, cineasta

A vantagem dessa abordagem autoral é que os filmes apresentavam uma visão mais consistente, já que a interferência externa (de roteiristas, produtores ou estúdios) era mínima. Por isso, era mais fácil para o diretor imprimir seu estilo cinematográfico às obras. É muito evidente a linha condutora que perpassa a filmografia de Truffaut, por exemplo, porque o cineasta tinha controle sobre todos os aspectos do filme, desde as páginas do roteiro até o corte final na tela. Assim, as características estéticas, os personagens e os temas recorrentes carregavam a “assinatura” de seu autor.

Lucilene Pizoquero aponta outra particularidade dos roteiros europeus, principalmente quando comparados aos filmes de Hollywood: o aspecto financeiro do cinema. “Os filmes hollywoodianos são realizados, em sua maioria, em estúdios, nos quais o produtor tem função primordial, pois é ele que decide quais roteiros serão filmados, sempre visando o lucro. Encontramos, também, o star-system, em que muitos roteiros são desenvolvidos para atores famosos”, explica. Isso influencia – e muito – o resultado final.

Segundo a professora, os europeus veem o cinema de forma diferente: como arte. Desse modo, é possível realizar filmes menores, sem muito investimento, para uma distribuição mais modesta. Como as produções não estão atreladas a empresas multimilionárias, como é o caso dos filmes norte-americanos, questões sociais ou polêmicas podem ser abordadas sem medo e os cineastas têm mais liberdade para experimentar novas linguagens.

Mais diálogos, menos efeitos especiais

O cineasta francês Jean-Luc Godard costumava dizer que seus filmes tinham começo, meio e fim… mas não necessariamente nessa ordem. Essa rebeldia é típica de um cinema autoral, estilo pelo qual a França e a Itália (principalmente, mas não se limitando a esses dois países) são reconhecidas no mundo todo. O Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa quebraram paradigmas no que diz respeito ao fazer cinematográfico, levando para o resto do mundo formas e narrativas experimentais.

“A língua francesa é verborrágica”, observa Lucilene. No entanto, não são apenas os longas vanguardistas franceses que abusam da palavra falada. “Os filmes europeus, em sua maioria, são baseados no diálogo e não em sequências de ação ou efeitos especiais”, completa a professora. São produções que abordam temas existenciais, relativos à natureza humana, que fazem o espectador refletir sobre suas próprias experiências. Não há espaço ou necessidade de grandes orçamentos ou recursos tecnológicos, tão comuns nos blockbusters americanos.

Normalmente, quando um diretor europeu escreve o roteiro, ele sabe que está escrevendo para si mesmo – afinal, é ele (ou ela) quem vai dirigir o filme. Muitos dos roteiros de Ingmar Bergman, por exemplo, parecem contos. Nesse caso, o que estava no papel servia apenas como um “esqueleto” do filme, não como um guia a ser cumprido à risca. O diretor podia se permitir essa autonomia, já que teria a chance de resolver várias questões narrativas no próprio set, improvisando com os atores.

Um dos motivos da rigidez do formato de roteiros na indústria cinematográfica, em geral, deve-se ao fato de que os filmes hollywoodianos (que servem como padrão mercadológico para muitos cinemas ao redor do mundo) geralmenteresultam de uma negociação entre várias partes – muitas das quais sequer conhecem a fundo a narrativa ou a linguagem do cinema. Executivos de grandes estúdios, por exemplo, pensam primeiramente no potencial financeiro do filme; ou seja, é preciso que o roteirista escreva a história de modo que qualquer pessoa possa entendê-la. Embora essa regra não se aplique ao cinema independente norte-americano, que se permite arriscar com trabalhos mais inovadores, as produções mainstream seguem uma estrutura de certa forma “engessada”.

Da europa para o mundo

O desenvolvimento cinematográfico dos filmes europeus tem acompanhado os processos históricos do continente. “A Europa passou por duas grandes Guerras Mundiais, cidades foram bombardeadas e, em muitas delas, houve ocupações de tropas inimigas. Portanto, as referências históricas sempre foram leitmotiv (do alemão, motivo condutor) para seus roteiros. No momento atual, as ondas migratórias são temas recorrentes do cinema europeu e a questão identitária também está presente em seus roteiros”, ressalta Lucilene.

Essas questões extrapolam as barreiras continentais e atravessam oceanos. Embora o cinema hollywoodiano influencie fortemente as manifestações culturais produzidas no Brasil, nossa produção cinematográfica foi, e ainda é, muito inspirada pelos filmes europeus. “Nossa cultura universitária foi construída baseada no modelo francês; as escolas e universidades absorveram esse modelo”, explica a professora. “Assim, é inevitável que haja influência”.    

Além de representarem as ideias, visões e realidades de diversos países, os roteiros dos filmes europeus acabam levando ao resto do mundo parte de sua cultura. Sua forma peculiar de estruturar a narrativa deu origem a obras cinematográficas arrojadas, que ajudaram a moldar movimentos revolucionários; em nosso país, particularmente, influenciando o Cinema Novo. A história da Europa está registrada em seus filmes, sempre engajados nos discursos políticos e nas preocupações sociais, levando para as telas os grandes dramas humanos de cada época.

Nesse contexto, a produção europeia é uma soma dos mais variados cinemas, unindo qualidade e ousadia. Entre os filmes europeus recentes cujos roteiros se destacam, todos escritos e dirigidos pelos respectivos cineastas (em alguns casos, com colaborações), vale destacar Fale com Ela (Hable con Ella, 2002), de Pedro Almodóvar (Espanha); O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, 2001), de Jean-Pierre Jeunet (França); A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen, 2006), de Florian Henckel von Donnersmarck (Alemanha); O Profeta (Un Prophète, 2009), de Jacques Audiard (França/Itália); Amor  (Amour, 2012), de Michael Haneke (Áustria/França/Alemanha); A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013), de Paolo Sorrentino (Itália); As Faces de Toni Erdmann (Toni Erdmann, 2016), de Maren Ade (Alemanha); e Guerra Fria (Zimna Wojna, 2018), de Pawel Pawlikowski (Polônia/Reino Unido/França).

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