AS VERDADES INCONVENIENTES DE JON ALPERT

A incrível trajetória de Jon Alpert, cujos documentários influem no rumo das relações internacionais e da política interna norte-americana

Por Julio Wainer

Jon Alpert foi o primeiro e mais premiado videorrepórter do mundo. Está na TV há 37 anos, época em que fundou o DCTV – Downtown Community TV Center (www.dctvny.org). “Já vi muitas pessoas morrerem na frente da câmera”, diz o veterano, cujos documentários costumam intervir no rumo da política interna e das relações internacionais dos EUA. “No entanto, nada é pior que assistir a uma amputação.”

Umas e outras (mortes e amputações) estão no documentário Bagdad ER (Pronto-Socorro Bagdad), 2005, um dos projetos de guerra em que Jon e equipe, protegidos, enfrentaram menos riscos de ataque pessoal. Mas talvez tenha sido o mais difícil de todos: os dois editores de imagens precisaram de amparo psicológico. “Nas seis semanas de projeto, as duas nas quais acompanhei as rondas externas se transformaram em um passeio relaxante, em comparação ao resto”, lembra o profissional.

Levada ao ar em 2005, a atração foi um marco da TV ao denunciar a forma “asséptica e cirúrgica” com que o governo Bush “vendia” a invasão do Iraque. Aliás, a mesma propaganda da Guerra do Golfo (2001), que Jon tentou reportar. O exército, ao qual o documentarista precisou submeter o vídeo finalizado (mesmo não fosse obrigado a seguir as recomendações dos militares), aprovou. Para Jon, eles não queriam estar lá.

Quem não gostou foi o ex-Secretário do Exército do Governo Bush, Donald Rumsfeld, que ligou ameaçando o Presidente da HBO em uma tentativa desastrada de vetar sua exibição. Se o fizesse, o Governo alteraria a Lei das Telecomunicações, em tramitação no Congresso, de forma a causar centenas de milhões de dólares em prejuízos para a emissora. O homem forte da HBO mandou o Secretário “catar coquinhos”. A informação vazou para o “New York Times” e a audiência do programa foi enorme. Era o primeiro trabalho de Jon e equipe embeded (termo de conduta para jornalistas acompanharem a guerra junto às tropas) com os militares. Jon, até então, sempre atuara de forma independente.

HISTÓRICO DE POLÊMICAS

A postura de independência da HBO surpreendeu Jon Alpert. Em 1991 ele voltava da Guerra do Golfo com uma verdade inconveniente em suas fitas: a guerra é cruel. Entre outras imagens, havia a de um bebê que tentava, sem conseguir, chorar; outra criança, de três anos de idade, pedia ao médico para não deixá-la sofrer (“morrerá em dois ou três dias”, antecipava o especialista). O mundo viu essas imagens – mas não os cidadãos dos EUA.

Duas horas antes de o primeiro capítulo da série com quatro programas ir ao ar, Jon foi chamado pelo Diretor de Jornalismo da NBC, com a qual mantinha um acordo de exibição por 11 anos. “Sempre que você vai ao Terceiro Mundo nos traz problemas”, sentenciou o outro. “Não colocaremos a série no ar e você está despedido.”

A NBC já era uma parte pequena da gigantesca corporação  capitaneada pela GE, que tinha interesses junto ao governo da época, em particular, na indústria bélica. Jon, então, levou o material à CBS, que o queria em seu time há tempos. Em princípio, a emissora adorou o material e prometeu levá-lo ao ar. Infelizmente, isto não aconteceu: dessa vez, quem foi despedido foi o Diretor de Jornalismo da CBS, justamente por conta desse acordo!

Na NBC, Jon visitou o Vietnã cinco vezes, mostrando a luta do povo para recuperar o país na guerra da qual seu país participou. Denunciou a ditadura Imelda e Ferdinand Marcos, nas Filipinas, que o governo norte-americano sustentava por conta de interesses militares. Levou Fidel Castro à TV dos EUA. E, também – esta foi a versão que Jon apresentou –, denunciou que os cubanos que deixavam Cuba eram, na verdade, doentes mentais e criminosos, não os freedom fighters que o governo Jimmy Carter dizia acolher. Por conta disso, o Presidente dos EUA interrompeu o acordo de acolhida aos dissidentes cubanos. O repórter ainda esteve na guerra Irã-Iraque, no Afeganistão abandonado pelas tropas soviéticas, expulsas pelos Muhadijin, e denunciou as ditaduras argentina e chilena, além da miséria de Angola e o apoio do governo norte-americano aos contras na Nicarágua.

No âmbito doméstico, apontou sua câmera para as precárias condições de moradia urbanas nos EUA e valorizou os movimentos sociais de ocupação de edifícios vazios. Também acompanhou a tomada de terras dos fazendeiros e agricultores pelo agronegócio, antecipada por impagáveis taxas bancárias.

“Procuro identificar as lutas populares e dar-lhes visibilidade”, comenta Jon.

No documentário Health Care: Your Money or Your Life (1977), mostrou as precárias condições dos hospitais públicos de Manhattan – foi chocante constatar os problemas técnicos e de manutenção dos aparelhos enquanto um paciente morria na frente da câmera. Isto lhe valeu prêmios e o primeiro ingresso na “lista negra” de uma emissora de TV, no caso, a PBS (Public Broadcasting System).

INTUIÇÃO E IDEALISMO

Na Academia Internacional de Cinema, onde apresentou cinco sessões sobre seu trabalho, Jon detalhou seu método de ação – especialmente, como videorrepórter. O uso das ferramentas (câmera, microfones e nada de luz ou de tripé), a construção de “sentido” (a busca por imagens de inserts, as gravações contínuas de um cinegrafista antenado aos conteúdos) e os acertos e erros no campo ético – uma exposição indevida pode causar a morte de pessoas – também entraram em pauta. O profissional ainda definiu a “Santíssima Trindade” do documentário: tempo (disponibilidade), acesso e paixão.

“Não sou um cara intelectualizado”, admite Jon Alpert – que, no entanto, dá aulas na prestigiada Columbia University. Ele é movido pela intuição na escolha das propostas de trabalho e até nas situações-limite em que se coloca. Enfrenta o dia-a-dia com a firme convicção do que faz algo por um bem maior. É o que o mantém na linha de frente, onde outros correspondentes não ousam chegar.

Ainda assim, engana-se quem pensa que o videorrepórter, por agir sozinho, é um individualista: Jon é, antes de tudo, um educador. A Downtown Community TV Center, localizada em Chinatown, centro de Manhattan, é o mais antigo centro de mídia dos EUA e uma importante referência em seu segmento. Inspirou a própria Academia Internacional de Cinema, que, por sinal, impressionou o convidado pela “energia das pessoas” que nela atuam. O êxito da  DCTV é combinar, de forma complementar, a produção de alta qualidade para a veiculação de massa, mantendo o contato com a base social: ensino e o acesso de jovens menos favorecidos – negros, chineses e latinos – às ferramentas da comunicação. Tanto quanto seu trabalho “de campo”, esta é uma forma apaixonada de se trabalhar para transformar o mundo.

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